Godzilla vs. Kong

cemitério do esplendor
4 min readJan 26, 2024

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Por: João Marco

Se existe um vício contemporâneo na produção cinematográfica hollywodiana em usar referências, homenagens e ícones como uma muleta saudosista que pouco ou nada oferece a concretização das imagens em sua obra, Adam Wingard talvez seja um dos principais cineastas — ou talvez o principal — que melhor sabe articular um universo de multireferências e coberto por uma iconografia que homenageia o tom, o ritmo e os elementos característicos das produções lançadas nos anos 80 e 90, passando por John Carpenter, Brian De Palma e até Dario Argento mas sem nunca se limitar em uma reprodução formal preguiçosa, utilizando dessas inspirações como o motor principal para articular sua personalidade própria.

E ainda que Godzilla vs. Kong esteja distante do autorismo tão marcante de produções como O Hóspede (2014) e Death Note (2017), é inegável que existe um artista empenhado em propor algo além da burocracia pseudo-dramática do cinema blockbuster do século XXI.

Talvez por algum receio da aceitação comercial do público e crítica se revelar semelhante ao que ocorreu em Death Note da Netflix, a Warner segurou as marcas tão intensas de Wingard, fazendo do seu filme um pouco mais formalmente contido, mas nem um pouco menos explícito que é uma produção de sua autoria. E aos poucos tal dinâmica se revela em como o diretor orquestra os elementos daquele universo ao seu próprio modo.

É justo argumentar que o filme de Wingard está mais inclinado para Kong: A Ilha da Caveira (2017) do que para Godzilla (2014) e Rei dos Monstros (2019): assim como Vogt-Roberts tinha um apreço e uma devoção formalista a hiperestilização nítida e compulsiva de sua progressão narrativa, Wingard reduz essa intensidade para momentos pontuais (o néon das luzes em um determinado estabelecimento, as luzes dos alertas de um navio ou o interior de uma nave) em prol de preservar — e maximizar — os impactos que cria no clímax.

A parte mais importante, tanto formalmente como “dramaticamente” de toda a projeção, está contida e bem guardada nos 40–50 minutos finais, onde as vertentes da batalha são dispostas no espaço escolhido para a dissolução do conflito. Grandioso em escala e estética, se Wingard optou por uma dinâmica formal um pouco mais controlada em sua unidade durante boa parte do andamento narrativo, é justamente para fazer de seu desfecho um evento de proporções catárticas.

E diferente dos embates escuros e omissos dos filmes anteriores do Godzilla, Wingard exibe com prazer o seu arsenal de escolhas, desde banhar Hong Kong em néons fortes que ressaltam os seus personagens em meio a escuridão do conflito a noite, o diretor utiliza de planos amplos que capturam a escala do combate, mas sem nunca perder a vertente pop ao criar um verdadeiro espetáculo sensorial de luzes, cores e sons onde a adrenalina se mescla ao fascínio e a franqueza da frontalidade do diretor inunda os sentidos do público.

E cito esse como o ponto máximo da obra por ser a catarse da abordagem central que delineia todo o drama e a ação de Godzilla vs. Kong: Assim que a figura do Mechagodzilla surge em cena, até muito antes do conflito, basicamente é Wingard resgatando a essência do clássico embate entre a humanidade e as forças da natureza característicos do cinema de destruição. O cineasta passa a ressaltar a total insignificância da presença humana em um combate de titãs, como somos completamente descartáveis e desnecessários no exato momento em que dois poderes da natureza entram em guerra. E, enquanto alguns compreendem sua irrelevância e se sujeitam a contemplar, outros se recusam a aceitar sua pequenez e acreditam que devem assumir uma posição alfa que jamais lhe pertenceu e adentrar um embate de gigantes em completa desvantagem. O real nêmesis da obra não são os monstros, mas a própria megalomania da humanidade.

A síndrome de grandeza que cega o corporativismo em um comentário humanista sobre a incapacidade em tentar contornar ou impedir que a natureza siga o seu curso. Nem Godzilla e nem Kong se rendem a uma força tão frágil e em tamanha desvantagem como a humana, que acredita na força de sua artilharia mecânica coberta de falhas e que ainda precisa ser muito testada para assumir uma posição que jamais iria conquistar.

Por isso os arcos desnecessários, além de mais contidos e menos hiperdramáticos como visto em obras anteriores, se assemelham — novamente — ao tratamento de Roberts em A Ilha da Caveira que reconhecia a irrelevância humana quando a natureza escolhe se vingar de um invasor hostil e que é facilmente eliminado pela sua escala diminuta, não somente em tamanho, mas em suas capacidades em uma luta de seres gigantes.

Aqui em Godzilla vs. Kong, os humanos nada mais são como formigas correndo de um lado para o outro em prol de evitar as pisadas desferidas por criaturas superiores em tamanho e força. Todo e qualquer humano que está em cena se revela superficial e é tratado de tal modo na mise-en-scène.

A diferença está naqueles que compreendem isso (o trio cômico relativamente funcional da Millie Bobby Brown, Brian Tyree Henry e Julian Dennison e os personagens de Rebecca Hall, Alexander Skasgard e Kaylee Hottle) e nos que enxergam tal desvantagem como uma fraqueza e decidem invadir um duelo de deuses (Demián Bichir), onde a sua presença reflete o lado mais egocêntrico de uma raça que crê caminhar para a ascensão, mas que seus atos o levaram apenas a sua queda.

E o que resta a aqueles que compreendem seu espaço na natureza é se curvar e apenas contemplar o espetáculo de destruição na qual a natureza se mantém em paz e os deuses compreendem o seu papel novamente. E por mais que a raça humana confronte os seus titãs, cabe a tais criaturas reforçarem sua posição de superioridade. Cabe a natureza lembrar que somos irrelevantes quando ela decide agir. E quando deuses decidem brigar, cabe a nós apenas assistir tal espetáculo.

Que bom termos Adam Wingard para registrar tão bem isso.

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