Irma Vep e os fantasmas do cinema
Por: João Marco
Lançado em 1996 por Olivier Assayas, o cultuado Irma Vep tinha uma proposta curiosa de exibir o resultado e os tumultos por trás da produção fictícia de um remake da série Les Vampires, de Louis Feuillade e encabeçada pelo diretor — ficcional — René Vidal (Jean-Pierre Léaud, um dos rostos mais emblemáticos da Nouvelle Vague), com a atriz Maggie Cheung (interpretando a si própria) no papel que, no original, era encarnado por Musidora.
Por si só, o filme de Assayas já confrontava muito dos fantasmas cinematográficos da filmografia de seu país, seja ao ter Léaud como essa figura central obcecada com a reencenação daquilo que classifica como “imagens de imagens”, reproduções de um passado ainda vivo no imaginário cultural da França ou até na forma que Cheung lida com a personificação de Irma Vep, no que diz respeito a “encarnar” a alma da personagem — nesse sentido, o componente espectral é mais discreto na versão cinematográfica.
Por isso, é curioso e aparentemente incompreensível que Assayas retorne ao conceito de seu aclamado filme, depois de mais de 20 anos, agora em um formato televisivo. Ora, se a premissa de um remake cinematográfico de Le Vampires já havia sido explorada em um jogo cênico de farsa cinematográfica com realidade, o que sobra para um seriado? Aparentemente, a resposta parece ser frustrante visto que Irma Vep distribuída pela HBO e produzida pela A24 soa como um comentário essencialmente superficial sobre as tendências contemporâneas no que diz respeito ao blockbuster e a cultura dos filmes de super-heróis, desde a consagração que vem ao participar de tais projetos até a demanda que tais produções exercem em um público cada vez mais sedento pelo mesmo filme com “cores diferentes” — e, em muitos casos, com as mesmas cores.
O problema não é necessariamente esse ponto de vista, mas como Assayas guia tal componente temático, explorando isso em uma verborragia quase sempre repetitiva e tampouco progressiva, onde o comentário parece estagnado no mesmo ponto e jamais chega a uma solução de fato. Nesse sentido, os três primeiros episódios sofrem ao tentar fazer o debate soar instigante para além de uma mera thread do Twitter com reclamações infindáveis, mas sem qualquer conclusão que agregue ao tema, no final das contas.
No meio disso, existem caminhos realmente instigantes que o cineasta valoriza de modo realmente impressionante, mas quase sempre se mesclam com uma verbalização enjoativa onde o subtexto não alcança qualquer importância nas imagens, e sim no argumento. Além de ser uma ideia inacabada, a única relação possível de ser feita é compará-lo a Birdman, dirigido por Alejandro González Iñárritu — e, acredite, isso não é um elogio.
Mas, a partir do quarto episódio, o cineasta começa a ir posicionando as cartas na mesa, discretamente chegando ao ponto que realmente almeja. E quando chega ao sexto e sétimo episódio (que se complementam perfeitamente, já que um inicia no exato ponto onde o outro havia se encerrado), Olivier Assayas transmite ao espectador a razão de voltar a Irma Vep em forma de seriado: Se no filme original, o diretor encarava os fantasmas de Feuillade, o legado e impacto de Les Vampires e a responsabilidade que existe em projetar as tais “imagens de imagens” aparentemente sem utilidade, tal qual afirma Vidal, aqui, Assayas encara a sua própria película e, de certo modo, os fantasmas do seu cinema.
Nesse sentido, Mira (Alicia Vikander) pode ser vista como uma representação da inclinação de Assayas em trabalhar com atrizes de outros países para além de intérpretes francesas (Kristen Stewart — que faz uma ponta na série — , Chloë Sevigny, Connie Nielsen, Maggie Cheung, Asia Argento entre outras). E, assim como Cheung no filme de 1996, é na presença de Mira que nasce o elo principal da obra, já que a mesma é constantemente possuída pelo espírito de Irma Vep, que, em busca de um desfecho, atua como dispositivo de resolução interna tanto para René Vidal quanto para a protagonista.
De certo modo, o seriado serve como uma nova oportunidade do diretor se redimir do seu passado inconclusivo e ter uma segunda chance de manter o espírito da personagem de Feuillade em descanso. Pensando nisso, a série parece falar tanto de Vidal (aqui, interpretado por Vincent Macaigne) quanto da importância que o cinema como projeção imagética possui para Olivier.
Em certo momento, Mira dialoga com Regina (Devon Ross), sua assistente, sobre o cinema de Kenneth Anger, na qual a jovem comenta sobre o estilo de abordagem do cineasta americano ser uma “forma de encontrar a luz” através do cinema. Assayas quer transmitir o ato de encenar, dar vida a algo essencialmente irreal, falso, um ato místico. E através disso que o cineasta se vê livre para ir aos caminhos mais diversos no “clímax” do seriado, onde o cineasta atira todas as cartas na mesa em uma longa e onírica sequência em que Mira/Irma Vep transpassa paredes e presencia conversas de membros da equipe até chegar a Vidal, novamente em uma espiral de pendências com o passado e deformando com o filme (mais uma vez) para encontrar algum tipo de resolução. E nesse ponto que Mira atua através de Vep como o elo que faz o diretor se reconciliar com o que deixou para trás.
Através da presença metafísica de Irma Vep, tanto Vidal quanto Mira encontram um novo propósito dentro do que fazem e conseguem se acertar com os dilemas de seu passado. No final, ambos redescobrem o que faz do cinema especial: é a capacidade de tornar o impossível algo momentaneamente possível. Ou em outras palavras, trazer um espírito de outro tempo para ajudar seus personagens a encerrarem suas pendências com o que ficou para trás. Os fantasmas de um passado cinematográfico atuando de modo restaurador naqueles que fazem a sua história permanecer viva.