Succession: Quarta Temporada (HBO, 2023) | Crítica

cemitério do esplendor
8 min readMay 30, 2023

--

Por: João Marco

(O texto abaixo contém spoilers)

Se existe semelhanças fortes entre a saga da família Corleone e a corrida pelo poder na dinâmica da família Roy, nada mais justo do que o capítulo final da criação de Jesse Armstrong seja um fac-símile direto de O Poderoso Chefão: Parte III, onde o clímax dramático esteja centralizado na tão esperada decisão que nomeia a produção e que está em foco desde a primeira temporada, quando a decisão de selecionar um sucessor foi declinada pelo próprio patriarca. Todavia, as influências de Succession vão além da adaptação de Francis Ford Coppola, estabelecendo conexões com a tragédia grega, monarquia, política e até mesmo a comédia mockumentary em uma narrativa que se guia pelo drama e tragicomédia para evidenciar o que existe de mais íntimo e transtornado em seus personagens.

Por isso mesmo que, em certo ponto, o espectador se depara com uma situação curiosa: ao descobrir que Lukas Mattson (Alexander Skarsgård), CEO da GoJo, está traindo o acordo que fez com Shiv (Sarah Snook) em prol de posicioná-la como a sucessora da Waystar após a compra, sua reação é um sonoro grito que, ouvido de outro ambiente distante pelos irmãos, Kendall (Jeremy Strong) e Roman (Kieran Culkin), dá contornos de comicidade ao instante que, em tese, é inteiramente dramático. Essa é uma das estratégias da encenação de Armstrong em conjunto com os diretores e demais artistas, já que, ao puxar sempre uma corda para o humor, ajuda a dilatar melhor certas sequências e eventos mais trágicos. O equilíbrio de ambos os fatores potencializa cada um dos momentos, sem perder a capacidade de fechar a câmera no rosto dos personagens e tampouco diluir ou retirar o efeito de uma observação sarcástica isolada ou em conjunto dos três irmãos.

Essas várias influências jamais sepultam a personalidade que Armstrong dá a jornada de ascensão e queda da família Roy. Pelo contrário: ao ordenar perfeitamente as inúmeras inspirações que agrupou durante as quatro temporadas, o criador busca sempre articular algo próprio com o material que existe em mãos. Por isso mesmo que, dramaticamente falando, Succession tem um material fortíssimo para explorar em definitivo o conceito de legado e o fantasma que assombra cada um dos descendentes de Logan Roy (Brian Cox): o receio de ser ofuscado pela sombra do próprio pai. Mas, de modo perspicaz, Armstrong faz com que essa linha narrativa comece a surgir aos poucos, primeiramente focando no esboço desse tema, que reside no temor de Kendall, Roman e Shiv em se tornarem o pai, materializado na disputa de poder que estabelece através das consequências do terceiro ano da série.

A brincadeira que Armstrong faz para ressaltar a temporalidade do seriado no primeiro episódio, ao ambientá-lo no aniversário de Logan - tal qual o seu piloto - e, com isso, evidenciar o ponto culminante que cada personagem se encontra e as relações entre eles se mostra fascinante, principalmente ao revelar as complexidades que o criador buscou transpor em cada uma de suas imagens nos três anos anteriores da sua obra. É aqui também que, sutilmente, Armstrong estabelece em Logan um certo presságio constante, realçado por uma interação que o patriarca tem com seu segurança a respeito de morte, vínculos afetivos e, claro, o legado que deixamos no mundo.

Esse tal “presságio” se expande durante uma conversa que Logan tem com os seus quatro filhos, no episódio seguinte e antes do casamento de Connor (Alan Ruck) com Willa (Justine Lupe), na qual se esgueira em uma “tentativa de perdão” que nada mais é do que uma desculpa para jogá-los contra a parede. Mas, curiosamente, é o mais próximo que chegamos a ver de um arrependimento “genuíno” por parte do patriarca, sempre enclausurado em uma figura desprezível e capaz de destruir o emocional dos filhos com apenas uma palavra - algo que acontece aqui, ao virar para Ken, Roman e Shiv e bombardeá-los ao afirmar que eles “não são pessoas sérias”.

É nesse ponto que chegamos ao derradeiro casamento de Connor e Willa.

Dirigido por Mark Mylod - responsável pela direção de alguns dos melhores episódios do seriado, algo assustador se comparado com a sua pobreza formal em The Menu - , é a partir do terceiro capítulo que a narrativa de Succession começa a refazer o seu caminho dramático em direção ao final. Abandona-se completamente a rixa entre o pai e seus filhos através de um acontecimento que fortalece ainda mais o vínculo que estabeleceram após o encerramento da temporada anterior: a morte de Logan Roy. Armstrong e Mylod potencializam o evento ao registrar a notícia, seja a sua descoberta até o desenrolar dos eventos ao redor dela pela perspectiva dos quatro filhos e como ambos lidam com o evento, seja o luto reprimido de Roman, a exasperação nos olhos de Kendall ou as lágrimas incessantes de Shiv, cada um dos descendentes lidam com a dor da provável perda - vale destacar a negação de Roman, insistentemente reforçando a possibilidade de reanimarem o pai em busca de evitar a única forma possível de encarar a situação.

E, como mencionei no comentário que fiz sobre o episódio, o que ressalta a situação do episódio é o modo que Mylod e Armstrong encontram de registrar o evento, seja através de uma montagem que pula de um núcleo para o outro, sem possibilitar respiros longuíssimos, mas mantendo a atenção do público e transpondo o desespero dos filhos para o plano, já que o sentimento do espectador tampouco é atrelado por qualquer traço de empatia a respeito da figura de Logan, mas sim através de Kendall, Shiv e Roman - e sobre esse último, nenhuma temporada mostrou o caçula da família Roy em uma posição tão emocionalmente frágil e conturbada como o último ano da série; méritos do trabalho de Culkin e Armstrong. Outro artifício formal que transpõe a angústia é a câmera que, recorrentemente, está presa a close-ups e sempre se deslocando fora do eixo, em um desequilíbrio que atua a favor da reação dos personagens perante o ocorrido.

Tudo isso culmina na imagem mais representativa do quarto ano de Succession: o abraço entre os três irmãos mais novos, em uma imagem pesarosa e significativa do laço que nutrem entre si e uma reafirmação das marcas de um legado fantasmagórico que irá persegui-los durante os episódios seguintes, além de um gesto de afeto e padecimento mútuo entre figuras tão atormentadas, que transparece as feridas mais profundas da qual compartilham.

Após a morte de Logan, a narrativa toma outro rumo e se os três filhos queriam superar o império do pai, agora precisam se organizar para assumi-lo. A partir daí, Armstrong orquestra uma série de jogadas que se aproximam cada vez mais da decisão final, onde fortalece a corrida pelo poder como motivacional para que cada um dos seus personagens encontrem uma forma de se beneficiar através dessa escolha. Nisso, o criador só reforça o antes mencionado fantasma da presença do pai e a incapacidade de seus filhos em replicarem o feito dele enquanto CEO da Waystar - voltando ao terceiro episódio, nos minutos finais, Roman abre um gráfico em seu celular e aponta para a escalada antes do declínio e afirmando que aquele era seu pai; meramente um número em um gráfico. O que se vê mais pressionado com isso é Roman, acreditando que realçar sua crueldade e frieza é o que faria se igualar ao patriarca.

Aliás, é interessante como Armstrong jamais pinta as suas figuras em cena com um olhar maniqueísta: por mais traumatizados e afetados que tenham sido os quatro filhos, ambos são figuras repulsivas e capazes de atitudes monstruosas apenas pelo poder, algo que pode ser recordado ao ver que ambos estiveram ao lado de Logan ao esconder, contornar e até mesmo relativizar os casos de abuso nos cruzeiros. Em um mundo onde os movimentos de seu jogo, suas estratégias e até mesmo suas maquinações mais sujas são importantes, os membros da família Roy passam por cima de qualquer um em prol de alcançarem o que almejam, algo nítido em duas discussões de Kendall com a ex-esposa, Rava (Natalie Gold) e em um segmento na qual vemos Roman em um protesto contra o recém-eleito presidente dos Estados Unidos, que pertence ao lado dos republicanos.

A verdade é que, por mais que insistam e lutem, nenhum dos filhos se equiparam ao pai. Acima de tudo, o vínculo que ambos compartilham é poderoso demais e a emotividade que ambos possuem tampouco seria capaz para reproduzir os atos do pai, movido inteiramente pela ambição desenfreada e sem qualquer preocupação com a quantidade de pessoas irá derrubar até atingir sua meta. Por isso mesmo que instantes como o choro de Roman durante o enterro de Logan, a hesitação de Kendall ao confrontar Rava ou até mesmo a pressão que sente Shiv ao perceber que o destino da empresa está todo no seu voto são provas nítidas de que, mesmo propensos as piores atrocidades imagináveis, ainda vemos humanos, cobertos de traumas e feridas e que não sabem como se livrar de tudo que acumularam dentro de si. Nesse quesito, a única definição possível para o que sentimos durante as quatro temporadas por eles é empatia, o ato de se colocar nas suas dores e não necessariamente ter alguma simpatia ou afeto por eles, mas entendê-los.

Por isso mesmo que, ao vê-los em um momento afetuoso onde brincam de maneira descompromissada entre si na casa da mãe, sorrimos ao imaginar a felicidade compartilhada entre os três naquele instante; em contrapartida, quando vemos os quatro descendentes de Logan vendo uma filmagem de semanas antes com o pai, choramos e sentimos não pelo patriarca, mas por imaginar a dor de perder alguém que amamos, mesmo que o próprio tenha contribuído para as dores e marcas que ambos carregam. É por isso que as últimas imagens de Succession são tão emblemáticas: todo o amor fraternal entre irmãos culmina em completa solidão, onde os três se encontram desolados, perdidos e essencialmente sozinhos.

E assim como Coppola encerrou a saga da família Corleone com a imagem final de Michael sentado em uma cadeira, coberto pela desolação da vida que escolheu, Armstrong replica o feito ao terminar com Kendall sentado em um banco de praça e percebendo que, após todo o esforço, a promessa feita quando era apenas uma criança jamais se cumpriu e agora, o personagem percebe que perdeu tudo.

Assim como Michael, Kendall termina a sua jornada percebendo que nada valeu a pena e agora só lhe resta abraçar a solidão de uma vida ambiciosa, porém vazia.

--

--